O presente ensaio procura engendrar uma leitura do conto “Dama da noite”, do escritor Caio Fernando Abreu, extraído do livro Os dragões não conhecem o paraíso (1988). Notamos no conto matizes marcadamente contemporâneas, o que nos faz pensá-lo e perscrutá-lo como uma tessitura literária eminentemente pós-moderna. O texto traz em suas configurações o esboço de um monólogo da personagem que nomeia a si mesma como “Dama da noite”, alusão à planta homônima de intensa e, por vezes, incômoda fragrância sentida principalmente à noite. O interlocutor da personagem é um sujeito que ela simplesmente se refere como “boy”. Tal personagem é a metonímia de toda uma geração, aquela que cresceu e atingiu a juventude entre o final dos anos 80 e o início deste novo século. Cito um trecho do conto em que Dama da noite claramente situa seu interlocutor neste contexto:
Sabe porra: você nasceu dentro de um apartamento, vendo tevê. Não sabe nada, fora essas coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark, computador, heavy-metal e o caralho. Sabia que eu até vezenquando tenho mais pena de você e desses arrepiadinhos de preto do que de mim e daqueles meus amigos fodidos? A gente teve uma hora que parecia que ia dar certo. Ia dar, ia dar, sabe quando vai dar? Pra vocês, nem isso. A gente teve a ilusão, mas vocês chegaram depois que mataram a ilusão da gente (ABREU, 1988, p.94).
A geração de boy se formou após o período mais cruel da Aids, em que os controles sociais normativos arrefeceram, a sociedade de consumo se fortaleceu, o individualismo e hedonismo continuaram conduzindo as existências individuais e as felicidades privadas. Tal geração se estende até esta que observamos no início do século XXI e estabelece com ela implicações que são observadas nas modelações do nosso tempo. Não obstante, podemos inferir que a contemporaneidade já configura os desígnios da hipermodernidade, tal qual foi apresentada por Gilles Lipovetsky em Os tempos hipermodernos. Ainda hoje todos estão presos às aspirações hedonistas e narcisistas que tanto marcaram a pós-modernidade; importante ressaltar, porém, que tais aspirações estão cada vez mais envolvidas por um halo de temores e inquietações (2004, p.71). O homem oscila entre a possibilidade de fortalecer sua autonomia afetiva e sexual e o risco de estar à mercê da insegurança e desamparo, categorias significativas da hipermodernidade. Citemos um fragmento do livro que analisa tal contexto:
Sinônimo de desencantamento com os grandes projetos coletivos, o parêntese pós-moderno ficou todavia envolto numa nova forma de sedução, ligada à individualização das condições de vida, ao culto do eu e das felicidades privadas. Já não estamos mais nessa fase: eis agora o tempo do desencanto com a própria pós-modernidade, da desmistificação da vida no presente, confrontada que está com a escalada das inseguranças. O alívio é substituído pelo fardo, o hedonismo recua ante os temores, as sujeições do presente se mostram mais fortes que a abertura de possibilidades acarretada pela individualização da sociedade. De um lado, a sociedade-moda não pára de instigar aos gozos já reduzidos do consumo, do lazer e do bem-estar. De outro, a vida fica menos frívola, mais estressante, mais apreensiva. A tomada das existências pela insegurança suplanta a despreocupação “pós-moderna” (LIPOVETSKY, 2004, 64-65).
Podemos inferir que a juventude a se fortalecer neste início de século XXI adquire contornos análogos àquela em que a geração da personagem boy está inserida. Importante salientar, no entanto, que ela vai além quando descortina aspectos nitidamente hipermodernos. Citemos outro trecho do conto de Caio em que compreendemos de modo mais claro os aspectos da desproteção e insegurança que marcam a hipermodernidade e que são visíveis no texto:
Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar Aids. Vírus que mata, neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho, pronto: paranóia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara e salve-se quem puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados. Ô boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija na boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão. Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro. Conta pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei. Mas na tevê também dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor mata. (ABREU, 1988, p. 94-95).
A sexualidade, vivida (e cada vez mais) com amarras e limitações, face ao perigo real que todos conhecem, não nos vem mais como proposta de êxtase e felicidade. Segundo Zygmunt Bauman, em Amor líquido, a sexualidade ainda é considerada “fonte de opressão, desigualdade, violência, abuso e infecção mortal” (BAUMAN, 2004, p.56). A vida contemporânea nos oferece modos de aliviar as frustrações; no entanto, os laços afetivos estão cada vez mais frágeis e efêmeros, condicionados aos amores líquidos, apontados por Bauman. Não há nada mais pós-moderno, ou hipermoderno, do que o chamado sexo virtual, não mais restrito às salas de bate-papo ou às webcams, mas já com o uso de vibradores interativos comandados através da internet, ou chamados simplesmente de televibradores portáteis; ou ainda roupas especiais equipadas com sensores, à mercê dos estímulos que algum desconhecido, do outro lado da tela, controla. Basta um simples clique no mouse para levar o outro ao orgasmo. Não obstante, o que cria a conexão sexual não é tão somente o software, mas a certeza de que um sujeito anônimo está controlando seu prazer físico. Por isso, é importante notar que não há a completa negação do Outro, já que uma alteridade sui generis o torna existente e, ao mesmo tempo, inacessível.
Das muitas tendências, inclinações e propensões naturais dos seres humanos, o desejo sexual foi e continua sendo a mais óbvia, indubitável e incontestavelmente social. Ele se estende na direção de outro ser humano, exige sua presença e se esforça para transformá-lo em união. Ele anseia por convívio. Torna qualquer ser humano - ainda que realizado e, sob todos os outros aspectos, auto-suficiente - incompleto e insatisfeito, a menos que esteja unido a um outro (BAUMAN, 2004, p.55).
Como vimos no caso do sexo virtual, esse prazer é conduzido por um agente ou interlocutor virtual, submetido a um contato fugaz e anônimo. A necessidade do Outro permanece implacável, de modo que a tecnologia criou meios de fomentar sucedâneos sexuais, que demarcam a existência de um sujeito alhures com o cuidado de deixá-lo à parte, já que “as relações de co-presença sempre envolvem contigüidade e afastamento, proximidade e distância, sensatez e imaginação” (URRY apud BAUMAN, 2004, p.80). Tal comportamento limita o risco de frustração a partir das possíveis contingências do contato real. A fuga do sofrimento é compreensível diante das intempéries dos relacionamentos humanos, já que “o sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro” (FREUD, 1972), como noz diz Sigmund Freud em “O mal-estar na civilização”. Notemos ainda que o sexo virtual se fortalece a partir do medo do Outro; talvez ainda mais, o medo do corpo do Outro. Ao lado do fracasso afetivo, o temor do corpo e pelo corpo. O sujeito, em sua preocupação hipermoderna prenhe de cuidados referentes à saúde e higiene está, no entanto, fadado a desenvolver mecanismos autodestrutivos de compulsão, ansiedade, depressão e outras diversas patologias individuais. São as chamadas “tendências contraditórias”, como aponta Lipovetsky (2004, p.55), em que os sujeitos vivem a lógica dos extremos, submetidos a estados oscilantes de frivolidade e ansiedade, euforia e vulnerabilidade. Cito outro fragmento do conto em que tais tendências contraditórias estabelecem implicações com o solilóquio cáustico de Dama da noite:
Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. Já chupou buceta de mulher? Claro que não, eu sei: pode matar. Nem caralho de homem: pode matar. Já sentiu aquele cheiro molhado que as pessoas têm nas virilhas quando tiram a roupa? Está escrito na sua cara, tudo que você não viu nem fez está escrito nessa sua cara que já nasceu de máscara pregada. Você já nasceu proibido de tocar no corpo do outro. Punheta pode, eu sei, mas essa sede de outro corpo é que nos deixa loucos e vai matando a gente aos pouquinhos (ABREU, 1988, p. 95).
Quando afastamos esta “máscara pregada” na cara da juventude deste início século XXI, descobrimos, segundo Bauman, “anseios não-realizados, nervos em frangalhos, amores frustrados, sofrimentos, medos, solidão, hipocrisia, egoísmo e compulsão à repetição” (SIGUSCH apud BAUMAN, 2004, p.66). Trazemos também como referência uma reflexão de Ciro Marcondes Filho, no livro A saga dos cães perdidos (2000), acerca desta geração prenhe de arremedos afetivos e dissimulações sexuais, ao mesmo tempo em que procura destacar a já citada condição hipermoderna do sujeito: “O mundo das virtualidades eletrônicas fascina por permitir um livre curso às fantasias, às errâncias em múltiplos mundos, ao possibilitar visitas voyeuristas a todo tipo de universo falsamente fechado. Mas ilude ao sugerir que esses mundos tragam o mesmo conforto ou a mesma tranqüilidade que o mundo das coisas e das sensações vividas sem mediação de aparelhos. A praticidade e a rapidez se pagam com o aumento da insegurança e do desespero (MARCONDES FILHO, 2000, p.51-51. Grifo meu). Lipovetsky, ao indicar a “fragilização das personalidades”, aponta uma “volatilidade [que] significa muito mais a desestabilização do eu do que a afirmação triunfante de um indivíduo que é senhor de si mesmo” (LIPOVETSKY, 2004, p.83). Estabelecendo um diálogo com Amor líquido, citemos outro fragmento do livro de Bauman também esclarecedor:
Há sempre a suspeita - mesmo que apaziguada e inativa por algum tempo - de que se esteja vivendo uma mentira ou equívoco; de que algo de importância crucial foi esquecido, perdido, negligenciado, permanecendo não-ensaiado e inexplorado; de que não se cumpriu uma obrigação vital para o eu autêntico da própria pessoa, ou de que algumas oportunidades de felicidade de um tipo conhecido, completamente diferentes do que se vivenciou antes, ainda não foram aproveitadas e tendem a se perder para sempre se continuarem desconsideradas (BAUMAN, 2004, p.73-74).
Isto nos leva a pensar que a sede pelo corpo do Outro jamais seria saciada, a ampliar a hiperindividualidade imanente a um estado de solidão profunda. A fome que nos move uns para os outros, fome ancestral em sua tentativa de união e fusão com o corpo do Outro, se esbarra implacavelmente nas barricadas emocionais que os sujeitos hipermodernos constroem em torno de si mesmos. O isolamento existencial do sujeito intensifica a incapacidade de mergulhar nos desvãos que compõem a condição enigmática do Outro. Cito um fragmento de um ensaio de José Carlos Castañeda, em que faz referência a uma citação de Octavio Paz:
Por más completo que sea nuestro dominio sobre el otro, hay siempre una zona infranqueable, una partícula inasible. El otro es inaccesible no porque sea impenetrable sino porque es infinito. Cada hombre oculta un infinito. Nadie puede poseer del todo a otro por la misma razón que nadie puede darse enteramente. La entrega total sería la muerte, total negación tanto de la posesión como de la entrega. Pedimos todo y nos dan: un muerto, nada. Mientras el otro esté vivo, su cuerpo es asimismo una conciencia que me refleja y me niega. La transparencia erótica es engañosa: nos vemos en ella, nunca vemos al otro. Vencer la resistencia es abolir la transparencia, convertir la conciencia ajena en cuerpo opaco. (PAZ apud CASTAÑEDA, 1998).
Citemos outro fragmento do conto de Caio, que estabelece uma vez mais novas implicações com a condição hipermoderna do sujeito imerso em um estado intenso de narcisismo, isolamento e precário entendimento de si e do Outro:
Cretino, cretino, pobre anjo cretino do fim de todas as coisas. Esse caralhinho gostoso aí, escondido no meio das asas, é só isso que você tem por enquanto. Um caralhinho gostoso, sem marca nenhuma. Todo rosadinho. E burro. Porque nem brochar você deve ter brochado ainda. Acorda de pau duro, uma tábua, tem tesão por tudo, até por fechadura. Quantas por dia? Muito bem, parabéns, você tá na idade. Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real, entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy (ABREU, 1988, p.96).
Temos então um caminho que se bifurca e nos deixa de antemão sem saída. De um lado, uma geração fadada a ser esmagada pela tecnologia, que distorce o alcance de uma alteridade real, relegando o toque, o afeto, o desejo. Por outro, a insatisfação no campo real quando o encontro acontece, aliada a conflitos ontológicos, aos abismos existenciais que separam violentamente as pessoas, num tempo em que todos estão inevitavelmente e profundamente sozinhos em um estado mútuo de incompreensão. Retiro novamente do texto de Bauman um fragmento que instiga tal reflexão:
União - porque é exatamente o que homens e mulheres procuram ardentemente em seu desespero para escapar da solidão que já sofrem ou temem por vir. Ilusão - porque a união alcançada no breve instante do clímax orgástico deixa os estranhos tão distantes um do outro como estavam antes, de modo que eles sentem seu estranhamento de maneira ainda mais acentuada. Nesse papel, o orgasmo sexual assume uma função que o torna não muito diferente do alcoolismo e do vício em drogas. Tal como estes, ele é intenso - mas transitório e periódico (BAUMAN, 2004, p.62).
A metáfora da “roda”, que Dama da noite apresenta ao seu interlocutor, a “roda-gigante”, uma espécie de moto-contínuo social que controla, modela e cerceia desejos, torna ainda mais avassalador o estado de isolamento dos indivíduos: “Fissura, estou ficando tonta. Essa roda girando girando sem parar. Olha bem: quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais de saco cheio um do outro, mas segurando umas.” (ABREU, 1988, p.97). Estamos agora diante de uma geração pós-yuppie, os rebentos da pós-modernidade, tão ou mais conservadores que seus pais. São yuppies hipermodernos, como notamos pela análise de Ciro Marcondes Filho ao analisar-lhes as pretensões (ou a falta delas):
São jovens profissionais sem vinculação expressiva com projetos, idéias, princípios sociais maiores e que minimizam ou mesmo ridicularizam as preocupações de natureza ética ou moral. São herdeiros das gerações que não conseguiam. Não conseguiram revolucionar a sociedade, não conseguiram reduzir a miséria e a injustiça, não conseguiram melhorar a qualidade de vida de ninguém (...) Uma vez depurados das ideologias que encheram a cabeça de seus antecessores, esses jovens ‘branqueados’, limpados da ‘doença histórica’ daqueles, ficam fascinados com outros valores, não tanto sociais mas eminentemente simbólicos (MARCONDES FILHO, 2000, p.139-140).
Estabelecemos aqui um elo reflexivo com o texto “A crise da ética hoje”, de Emannuel Carneiro Leão: “No lugar da ética entrou a economia, ocupando todos os postos e funções e substituindo qualquer valor (...) Os valores humanos e o homem, como princípio e fim de toda ordem, foram afundando, afundando e se rendendo aos poderes do mercado. Se há sensores para o lucro, só se busca globalizar investimentos, só preocupam os rendimentos em expansão” (CARNEIRO LEÃO, 2001, p.07). Por mais que os paradigmas tenham sido rechaçados, os modos de operar identidades estejam cada vez mais multifários e o arrefecimento das coerções sociais possibilitasse a priori o fortalecimento da autonomia individual, o sujeito tornou-se frágil e esgotado por uma série de “panes” subjetivas (LIPOVETSKY, 2004, p.84), advindas de temores reais e imaginários. Estar fora da roda citada por Dama da noite é nadar contra o fluxo, sob o risco de se transformar num outsider, um estrangeiro do seu próprio tempo, indesejado e inadaptado face às razões pelas quais os outros vivem e pagam.
2) O “Verdadeiro Amor”: uma releitura do Afeto
Evitando tornar nosso discurso tão fatídico, gostaria de apontar um caminho, ou talvez mesmo uma rota de fuga, em meio a esse labirinto de paradoxos que observamos agora. Pensemos no seguinte viés de compreensão: a possibilidade real de construir e viver o Afeto. Afeto como vivência real, afeita a intensidades de dores e gozos, de encanto e angústia, vivência que compõe o homem em sua totalidade de sofrimento e satisfação. Justamente Dama da noite é quem nos permite suscitar a expectativa e a esperança. Cito o conto: “E acontece que eu ainda sou babaca, pateta e ridícula o suficiente para estar procurando O Verdadeiro Amor” (ABREU, 1988, p.92). Pensemos em nossos tempos hipermodernos, e pensemos no Afeto como o grande desvio diante do fluxo da mediocridade, uma condição que o sujeito encontra de burlar amores líquidos que escorrem de suas mãos, desta condição de afastamento e hiperindividualismo dominantes. Lipovetsky engendra um pensamento um pouco mais otimista, o que funciona como um contraponto ao texto de Bauman:
Ainda que as uniões sejam mais frágeis e mais precárias, nossa época, apesar de tudo, testemunha a persistência da instituição do matrimônio, a revalorização da fidelidade, a vontade de contar com relações estáveis na vida amorosa. Observam-se mais insatisfações ou frustrações referentes às experiências sem futuro do que odes aos amores casuais (LIPOVETSKY, 2004, p.74).
Mesmo que ainda soem antiquadas as referências ao casamento e à fidelidade, existe uma busca que se estende para o Outro, uma necessidade de união que talvez não necessite de nomes, conceitos ou categorias, não mais submetido a paradigmas modeladores. Mesmo que o “Verdadeiro Amor”, citado por Dama da Noite, seja proferido de modo cáustico pela crença em seu caráter ilusório, ele ainda pode ser desmistificado por cada um de nós. “Fica óbvio que o indivíduo não é o reflexo fiel das lógicas hiperbólicas midiático-mercantis; ele não é o ‘escravo’ da ordem social que exige eficiência, tanto quanto não é o produto mecânico da publicidade. Outras motivações, outros ideais (relacionais, intimistas, amorosos, éticos), não param de orientar o hiperindivíduo” (LIPOVETSKY, 2004, p.82). É possível pensar no Afeto como norteador das intersubjetividades, pois estamos na urgência de resgatar a compreensão do humanismo e da alteridade com um novo viés de entendimento e ação. No âmbito das intersubjetividades, o Afeto é imanente ao nosso desempenho como sujeitos pessoais, além do que poderíamos suspeitar.
Se nossos tempos hipermodernos nos sujeitam a um estado de isolamento e incompreensão, a ponto de fortalecer as barricadas emocionais que construímos em torno de nós mesmos, que possamos buscar um novo entendimento para as práticas afetivas, mesmo que tenhamos que repensar o fluxo histórico que se impõe. Cito novamente Emannuel Carneiro Leão: “Na existência acima de toda necessidade e de qualquer atualidade está a possibilidade. O homem é o único real que, por imposição de seu próprio modo de ser é, essencialmente, rebelde. Nem a natureza, nem a história podem forçar-lhe um código de vida ou uma norma de ação. É próprio do homem rebelar-se contra toda imposição de algo que deva ser” (CARNEIRO LEÃO, 2001, p.14). Dama da Noite, por mais pungente e corrosivo seja seu discurso, termina suas divagações com um desejo que nasce de uma esperança que nunca morre:
[Espero] aquele que vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar. Diferente dessa gente toda vestida de preto, com cabelo arrepiadinho. Se quiser eu piro, e imagino ele de capa gabardine, chapéu molhado, barba de dois dias, cigarro no canto da boca, bem noir. Mas isso é filme, ele não. Ele é de um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo. É por ele que eu venho aqui, boy, quase toda noite. Não por você, por outros como você. Pra ele me guardo. Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o Verdadeiro Amor. Cuidado comigo: um dia encontro (ABREU, 1988, p.98).
Talvez o homem esteja imerso em um estado de complexidade intransponível, cada um a ocultar o seu infinito ou seu abismo de dores. Não obstante, menos do que buscar devassar os meandros intrincados da alma humana, existe um esforço de compreensão inerente ao exercício de alteridade, pois inevitavelmente vivemos pelo Outro, no anseio de oferecer-lhe vínculos afetivos que possam perdurar. Talvez o Afeto se faça sentir por vias menos idealizadas - e, por isso mesmo, menos passíveis de frustração -, como algo que possa ser efetivamente vivido e compreendido, por mais que esteja à mercê de sobressaltos e zonas emocionais de turbulência. “Eu quero a sorte de um amor tranqüilo/ com sabor de fruta mordida” (Todo amor que houver nessa vida, Cazuza/Frejat). O sabor do fruto já degustado, sem dissimulações sentimentais, confirma o estado mútuo de entendimento e compreensão. Que sejamos rebeldes ao evitar o fluxo que nos encaminha para o estado de letargia e imobilidade dos desejos; que estejamos firmes em nossa gana pelo Afeto, pela certeza de que o mundo cada vez mais desaba pela falta dele. De qualquer modo, é com o Outro e pelo Outro que desenvolvemos plenamente o Afeto, mesmo que seja um abismo, mesmo que seja mistificação, mesmo que seja a única rota de fuga ou salvação.
Referências bibliográficas
ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
CARNEIRO LEÃO, Emannuel. A crise da ética hoje. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 146:5/15, jul.-set., 2001.
CASTAÑEDA, José Carlos. Octavio Paz: Sed de otredad. Etcétera, política y cultura, 21 de maio de 1998. Disponível em: http://www.etcetera.com.mx/1998/277/ant0277.htm. Acesso em 08 de julho de 2006.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. 24 v.
LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. Tradução: Mário Vilela. São Paulo: Barcarola, 2004.
MARCONDES FILHO, Ciro. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
diz ai: